Texto: Jana Lauxen. Fotos: Fernão Duarte
O trabalho de um escritor
e de uma editora, em nossa visão, vai muito além de escrever e publicar livros.
Em um país como o Brasil,
com índices de leitura baixíssimos, também é nosso papel formar leitores.
Em um país como o Brasil,
onde o acesso à literatura ainda é restrito – e até na arte a desigualdade se
apresenta – é nossa função ajudar a democratizar a cultura e torná-la
radicalmente acessível e inclusiva.
Em um país como o Brasil,
no qual seus artistas são tratados como inimigos públicos número um, também é
nosso papel resistir.
Porém, nem só de lutas,
dor, sangue e lágrimas se faz a resistência. Resiste-se, igualmente, pela
alegria. Pelo afeto. Pela troca. Pelo abraço. Pelo fortalecimento de uma rede
de contato, apoio e amor. Paulo Gustavo já deu a letra: rir é um ato de
resistência. E é.
Porque o autoritarismo
exige corpos e mentes tristes. Tudo o que é belo e leve e livre aterroriza os
subjugadores e não à toa a arte é a primeira a ser atacada quando a democracia se
vê ameaçada.
Neste contexto, o 1º
sarau Leituras Noturnas, uma iniciativa da Editora Os Dez Melhores em parceria
com o El Gato Gastropub, veio para fazer mais do que apenas reunir autores e
leitores carazinhenses para uma noite de escuta e literatura.
A ideia também era construir
pontes e destruir muros. Criar conexões. Porque, estamos carecas de saber,
sozinhos não vamos a lugar nenhum. E apesar de habitarmos uma sociedade na qual
é cada um por si e Deus por todos, sabemos que, ou é um por todos e todos por
um, ou estaremos ferrados – todos e cada um.
“Ah, lá vem a Janaína e
seu patológico otimismo”, talvez alguns dirão.
Mas quando você participa
de uma noite como foi a de 10 de junho de 2022 fica difícil não seguir em pé,
acreditando e sorrindo, mesmo em meio às sombras. Afinal, uma pequena fresta de
luz basta para iluminar o que se apagou.
Quando cheguei ao El
Gato, por volta das 18h30, já encontrei alguns dos autores lá, se preparando. O
Jonhy e a Chris, proprietários do espaço, corriam pra cá e pra lá pra deixar
tudo pronto para quando o público começasse a chegar. As mesas já estavam organizadas
e reservadas com o nome de cada convidado. Uma galera em movimento colocando a
roda para se movimentar. Porque, repito: sozinhos, sequer saímos do lugar.
O sarau iniciou por volta
das 19h40 e da melhor forma possível: com a entrada brilhante e hipnotizante de
Jacque Daudt, que iniciou sua apresentação da mesa onde estava sentada e
circulou por entre o público, enquanto declamava o poema Canção Ballet do genial Mario Quintana. Foi de arrepiar.
Depois veio As profecias, de Raul Seixas, cuja
introdução Jacque interpreta com tanto entusiasmo e desenvoltura, que é
impossível não embarcar junto com ela no ritmo e na performance que empresta à
fabulosa letra do nosso Maluco Beleza.
Sabendo o quanto sou fã do
Raul, da música e dela, Jacque generosamente me chamou para concluir a poesia ao
seu lado e ó: que honra!
Em seguida foi a vez do
Afobório, pseudônimo do escritor Alexandre Durigon, que, ao ser chamado no
palco, antes de iniciar sua leitura, acendeu uma pequena vela, que colocou
sobre uma banqueta em frente ao microfone. Então explicou que ele não era um
cara da religião, mas que a literatura era sua oração. Seu jeito de rezar e se
conectar com algo maior, mais forte e poderoso, que escapa ao nosso
conhecimento mundano. Creio que não houve um ali que não se identificou.
Após, Afobório mandou ver
no poema Mel e Chumbo, no qual deseja
“interromper as engrenagens que trazem dor, destruir os apitos das fábricas e
pichar os nossos muros com citações subversivas”. Ah! Que assim seja!
Quando Afobório saiu, entrou
o Carlos Eduardo Goodman, autor do recém-lançado livro Coisas do Interior, que traz contos autobiográficos nascidos e
criados no interior do Rio Grande do Sul – razão pela qual é fácil se reconhecer
nas narrativas ali reunidas. Carlão leu dois dos textos presentes em seu livro
de estreia, Naquele dia, te beijei de
olhos abertos e E ela me disse: eu
sou só mais uma? – que, apesar de dois, funcionam como um, e tratam de
amores que poderiam ter sido, mas não foram. Uma contra-homenagem ao Dia dos Namorados,
que aconteceu dois dias depois do sarau.
Carlão dominou o
microfone, roubou a atenção do público e, apesar de garantir estar nervoso,
ninguém viu nervosismo nenhum.
Logo depois veio o Don Eli, pseudônimo do escritor Élisson Telles Moreira, trazendo em suas mãos o
livro Desejos, de sua autoria,
publicado em 2015 pela Chiado Editora. Don Eli leu algumas das poesias de sua
obra, um trabalho sensível e inteligente, e arrancou aplausos do público.
Don Eli deu lugar ao Rafa
MadVision, músico, professor, produtor musical e multiartista, que pela
primeira vez apresentou suas letras em formato de texto e não de música. Rafa
leu algumas de suas composições, parte delas feitas em parceria com seus alunos,
capturando o olhar, os ouvidos e a concentração de cada um dos presentes no
sarau.
Professora, pensadora,
escritora e uma das pessoas por quem mais tenho admiração neste planetinha azul,
Gelcí Agne leu dois poemas seus, A vida é antagônica e Corporeidade poética, que, como tudo o que vem dela, foram de uma potente
sensibilidade, tocando fundo em quem teve o privilégio de ouvi-los. Durante sua
leitura, o público nem piscou.
Depois da Gelcí, uma
pequena pausa de 15 minutos pra digerir o muito que já tinha acontecido. E olha
que ainda vinha muito mais.
Após o intervalo, o sarau
voltou com uma participação à distância. Silvana Xavier, uma das autoras
confirmadas, não pôde comparecer e pediu que eu lesse seu texto, para que,
mesmo ausente, se fizesse presente. O texto escolhido por ela foi Tempo de dor, tempo de amor, publicado
no coletivo literário Carazinho por Escrito, lançado em 2020 pela Editora Os Dez Melhores. Neste texto, Silvana
fala sobre a pandemia da Covid-19, relembrando a tragédia que vivenciamos e o
quanto o amor, mais do que nunca, se faz fundamental para nos manter vivendo, e
não só sobrevivendo.
A próxima escritora a se
apresentar foi Jocenara da Costa Schardong, que trouxe um trecho de seu livro, Quando o amor tem que esperar...,
lançado em 2021 pelo Clube de Autores. Porém, antes, o público cantou um
caloroso Parabéns pra você, já que ela
estava de aniversário justamente naquele dia.
Que bom que a Jocenara veio
celebrar junto com a gente, pois a sua leitura deixou todos atentos e, quando a
própria autora se emocionou, em um determinado trecho do texto, fez essa emoção
alcançar cada um ali.
Então chegou a vez da Mônica
de Oliveira, escritora, diretora da escola municipal Presidente Getúlio D. Vargas,
de Carazinho, e vereadora suplente atuante. A Mônica leu duas poesias, ambas
publicadas no coletivo Carazinho por
Escrito: Minha Carazinho!, de sua
autoria, e Canção para o velho pinheiro,
de autoria de seu pai, Ademar Nogueira de Oliveira. Esta última, aliás, virou de
fato uma canção, mostrando mais uma vez que música e literatura são filhas da
mesma mãe.
O escritor Roberto Cruz,
autor do livro Missão Fênix: A Outra Guerra, veio logo em seguida e apresentou um trecho de seu próximo livro, Vale do Inferno. Saca só a sinopse: um
investigador da polícia retorna à sua pequena cidade natal para investigar uma
série de assassinatos, e lá descobre que as vítimas são justamente aquelas
pessoas que o perseguiam na juventude, por conta de sua sexualidade. Ficou
curioso? Bem, você não é o único, razão pela qual iniciamos a campanha #TerminaLogoEsseLivroRoberto
naquela noite mesmo.
Na reta final do sarau,
eu tive a oportunidade de ler o poema Vão
dizer pra ti, garota, parte integrante do meu próximo livro, Cantigas de Despertar, que reúne 35
poesias voltadas para adolescentes e dorminhocos de todas as idades, abordando
temas que, não só na adolescência, mas em nossa vida inteira, ainda são fonte
de constrangimento e angústia: morte, depressão, racismo, consumismo, redes
sociais, violência, sentimentos.
O lançamento acontece no
dia 10 de julho, domingo, entre 16h e 19h, aqui em Carazinho, na Biblioteca
Pública Municipal! Eu conto com você lá!
No retorno do segundo e
último intervalo, já no encerramento do sarau, o público foi convidado a fazer
algo que não é acostumado: ouvir música. Sim, sim, sabemos que todos nós
ouvimos música o tempo inteiro, mas será que ouvimos mesmo? Geralmente, ela é só
um pano de fundo, trilha sonora para nossa vida corrida e atribulada, e a
escutamos enquanto dirigimos, estudamos, conversamos, trabalhamos, varremos o
chão, lavamos a louça. É raro a gente parar e apenas ouvir a música; prestar
atenção na letra, no ritmo, na melodia.
E foi exatamente isso o
que aconteceu na apresentação da banda Auto Sugestão, representada no sarau por
Rafa MadVision e Ronaldo Santos, que tocaram três músicas autorais: Lembranças, Retrovisor e Na estrada.
Uma experiência especial e sensorial, além de uma celebração ao som e ao texto
trabalhando em harmoniosa parceria.
Quando o sarau terminou, seguiu
o show da Auto Sugestão, trazendo agora o bom e velho rock gaúcho que nunca
cansamos de ouvir, com TNT, Engenheiros do Hawaii, Nenhum de Nós e daí pra
frente, colocando em pé quem estava sentado e fazendo cantar quem estava em
silêncio.
Como se não bastasse tudo
e tanto, quem seguiu no El Gato após o sarau, afora o show da Auto Sugestão,
presenciou um dos momentos mais incríveis da noite: Taís da Rocha, que
acompanhou as leituras em frente ao palco, pediu licença aos meninos da banda
para cantar e tocar, o que eles prontamente aceitaram. Taís tomou sua posição
atrás do microfone, lugar onde nasceu para estar, e com um vozeirão e uma
segurança que não se vê por aí, tocou e cantou, tocando e encantando todos os
sortudos que estavam ali.
Eu gravei, de nada:
Taís foi convidada para
ler um de seus textos no sarau, pois escreve lindamente. Contudo, não pôde
aceitar, pois precisaria passar um deles para o braile e o tempo era curto.
Taís é deficiente visual, mas vê muito, vê fundo e vê longe, e é uma artista de
múltiplos talentos da qual Carazinho deve se orgulhar.
Já é presença confirmada
na segunda edição do sarau Leituras Noturnas e também na memória e no coração
de todos nós!
Na manhã seguinte ao
sarau, minha mãe (que estava lá, como sempre está) me disse que ficava muito
feliz por saber que eu estava cercada de pessoas tão queridas. E ela está
completamente certa, como geralmente as mães estão. Eu também me sinto muito
feliz e muito privilegiada por ter ao meu lado tanta gente especial – e adoravelmente
malucas, a ponto de virem comigo sem hesitar, hehe.
Ao Jonhy e a Chris, do El
Gato Gastropub, obrigada pelo espaço nada menos do que perfeito, que tão
gentilmente cederam para nós! Eu disse brincando (mas falando a verdade) que,
se eu construísse um lugar só para fazer um sarau, não teria feito nada melhor
do que o El Gato, um bar cultural em sentido literal e literário. Máximo
respeito e gratidão a toda a equipe do El Gato, pelo esforço, pelo trabalho,
pelo ótimo atendimento, dedicação, drinks, chopes gelados e comidinhas delícias.
Vocês arrasaram!
Não conhece o espaço?
Para de bobear e corre lá! Em Carazinho, na rua Carlos Barbosa, 68.
Aos autores que se
apresentaram no sarau, muito obrigada pela coragem de escrever e ler e criar e
compor e pensar e fazer pensar! Obrigada por seguirem em pé e em frente, apesar
dos pesares, fazendo a literatura acontecer em nossa cidade! Este sarau foi
feito com, por e para vocês e sempre será! Obrigada por confiarem em nós!
A cada um que esteve lá, muito
muito muito muito obrigada pela presença, pelo carinho, pela atenção, pelo
silêncio, pelo respeito. Porque é preciso falar sobre o público presente no
sarau, que participou ativamente do evento, contribuindo com seu interesse e
envolvimento. Um público diverso, de múltiplos estilos, idades e contextos, mas
unidos por um só amor: a literatura. Celulares nos bolsos, olhos atentos no
autor que lia, foi maravilhoso contar com vocês nesta noite! Obrigada por fazerem
parte!
Aos queridos Rafa e
Ronaldo, não há palavras para agradecer por tanta parceria e confiança e tudo o
que faz a vida ter algum sentido. É uma honra desfrutar da amizade e do talento
de vocês!
Todo nosso amor pelo
Fernão Duarte, que dispensa apresentações, pois é parte integrante de tudo o
que pensamos e fazemos. Sem ele, esta resenha fotográfica sequer seria
possível. Obrigada, amigo, pelo trabalho primoroso e por tudo o que ainda virá!
E, claro, obrigada a
todos que acompanharam e comentaram as lives do sarau – que, inclusive, estão
disponíveis em meu perfil no Facebook: Início, Parte 1, Parte 2 e Parte 3. Até
o momento, já ultrapassamos mil visualizações e agradecemos a cada um que,
mesmo de longe, esteve pertinho da gente.
Diz o dicionário que
sarau significa “reunião literária noturna”. Todavia, devo dizer que o Leituras
Noturnas foi além de uma reunião literária e se estendeu por muito mais do que
somente uma noite. Foi um encontro de pensamentos; um reencontro de
sentimentos. Foi potente, bonito, afetivo. Curativo. Uma oportunidade de se
desarmar, parar, ouvir, respirar. Se permitir ser vulnerável para sentir e
aberto para dar e receber.
Naquela noite, pessoas me
procuraram porque gostariam de ler no próximo sarau (“eu também quero!”).
Outras se inspiraram a (re)começar a escrever (“acho que eu consigo!”). Algumas
experimentaram a poesia pela primeira vez (“não sabia que eu gostava!”).
Não foi só uma noite. Foi uma revolução.
Sim, uma revolução.
A literatura é uma ameaça
ao autoritarismo e a quem deseja controlar os outros. Para estes, nada neste
mundo é mais perigoso do que um leitor. E toda vez que alguém abre um livro,
abre-se também uma minúscula fenda nesta muralha de horror e ódio que separa
nossos quintais, e cada minúscula fenda já permite à luz passar. E, de fenda em
fenda, cedo ou tarde, o muro da ignorância desaba e estaremos, enfim, livres.
Livres como nenhum déspota deseja nos ver.